O telefone tocou logo cedo. Era a namorada, chorando. Tivera uma noite
de sono ruim, chegara ao trabalho cansada e dera de cara com um problema
sério, que parecia insolúvel. Bateu o desespero e ela ligou.
Conversamos. Não havia o que fazer além de se acalmar e tentar resolver o
caso. Disse isso a ela, juntei umas palavras de carinho e a ligação
terminou de forma tranquila, uns minutos depois. Ela só precisava
desabafar.
O significado dessa história cotidiana me parece da maior importância:
é essencial ter alguém para quem ligar quando estamos aflitos, tristes
ou perdidos. É fundamental ter com quem falar quando o mundo a nossa
volta desmorona ou parece hostil e desanimador. Mesmo quando estamos
felizes diante de uma notícia inesperada, ou de algo por muito tempo
aguardado, temos necessidade de falar, contar, dividir. Para quem você
liga nessas horas?
Nós damos uma importância enorme – e merecida – ao erotismo e ao
romantismo nas nossas relações. Essas coisas são mesmo essenciais. Mas
há outro componente na vida dos casais, igualmente fundamental, para o
qual a gente nem sempre dá o devido valor. É a função de conforto e
aconchego que o outro tem na nossa vida. É a proteção, ainda que
subjetiva, que ela ou ele nos oferece. Quem ocupa essa posição detém uma
das chaves da nossa existência. A pessoa para quem a gente faz a
primeira ligação é uma pessoa essencial.
Faz algum tempo, uma amiga minha foi assaltada na porta da casa dela. A
experiência foi assustadora, claro. Ela entrou no prédio apavorada,
abriu a porta do apartamento chorando e correu para o telefone. Mas, em
vez de ligar para o namorado, ligou para um colega do trabalho. Não foi
pensado. Foi um impulso. Ela chamou a pessoa que ela gostaria de
abraçar, a pessoa de quem precisava naquele momento. Só depois, quando a
conversa com o colega acabou, ela se lembrou de ligar para o namorado.
“O que isso significa sobre a minha relação com esses dois homens?”, ela
me perguntou, uns dias depois. Eu achei que nem precisava responder.
Significa, não?
Os telefonemas que a gente faz na hora do perrengue são reveladores.
Eles exibem nossas conexões profundas, até mesmo as lealdades
inconfessáveis. Se você acabou uma relação, mas ainda gosta da mulher,
vai perceber um minuto depois de bater o carro. É para ela que você vai
ter vontade de ligar. Se você conseguiu um tremendo emprego, não vai
contar para o bonitão que conheceu no bar na semana passada. Vai ter
vontade de ligar para o sujeito que sabe como isso é importante para
você. E
quando a gente bebe e fica insuportavelmente romântico e
sentimental? Numa hora dessas, ninguém liga para pessoas estranhas.
Comoção a gente divide com gente de confiança. Somos ridículos apenas
com quem nos conhece muito bem.
Claro, nós não ligamos para uma única pessoa na vida. Temos vários
interlocutores, para diferentes situações. Às vezes precisamos da
franqueza de um amigo, outras vezes do apoio incondicional da mãe ou de
um irmão. Quando os filhos crescem é gostoso dividir com eles coisas
importantes, assim como ouvi-los em casa de dúvida. Quanto maior for
essa agenda essencial, quanto maior o número de pessoas para quem se
possa dar um telefonema íntimo, melhor. A minha impressão, porém, é que
mesmo a família acolhedora ou amizades sólidas não substituem a
cumplicidade de uma parceira emocional. Ter alguém especial para quem
ligar faz toda a diferença – sobretudo quando as coisas parecem estar
caindo sobre a nossa cabeça.
Na única vez que eu estive na China, anos atrás, houve um terremoto.
Acordei com a cama sacudindo e percebi, apavorado, que o quarto inteiro
do hotel tremia. Eu estava acima do 20º andar e pude ver o mundo
balançando pela moldura da janela. Não recomendo a experiência. A coisa
durou alguns terríveis segundos e cessou de repente. Alívio. Minha
primeira reação, sentindo que tinha escapado da morte, foi sentar na
cama e ligar para a ex-mulher, que estava no Brasil. Ela ouviu por três
segundos e me interrompeu com uma ordem: “Larga esse telefone e corre
pra rua! Pode ter outro terremoto logo em seguida!” Era uma criatura
prática... Eu tinha ligado para dizer o quanto ela era importante, mas
nem foi preciso. O ato de telefonar já dizia tudo, mesmo que eu não
tivesse aberto a boca.
Ivan Martins (Coluna na Revista Época)
que texto, hein? daqueles que nos faz refletir a cada palavra lida.
ResponderExcluirgeralmente ligo p/ o meu namorado. ele me dá conselhos, consegue me acalmar e sempre tenta me mostrar que há saída p/ tudo.
minha mãe também, muitas vezes ligo p/ ela.
bem, não tenho vários interlocutores, mas os que tenho conseguem me fazer sentir bem nas horas difíceis e muitíssimo bem nos momentos alegres.
beijo